O cronista e o estigma

TROCA DE E-MAILS: O JORNALISTA E O CEGO (2003

Caro Valdenito, tudo bem? Meu pai me repassou seu e-mail. Você estava aquele dia no Museu da Repú blica?

Abraços

Mauro Ventura

Enviada em: terça-feira, 2 de dezembro de 2003 07:44 Olá Mauro!

Aqui Valdenito de Souza (analista de sistemas,formado em adiministração de empresas)- aluno da Estação das Letras.
Sim, estive naquele dia no museu da república (aliás, parabens por sua participação, a qual, achei acima de tudo espotanea!).
Eu , era aquele _ deficiente visual que quis saber de você e do outro palestrante, o que voces achavam do bruxo do Cosme Velho (nosso inigualável Machado de ASSIS), como cronista.
Desejava lhe fazer uma outra pergunta, mas, o tempo não permitiu.
Como voces cronistas (formadores de opinião) trabalham esta coisa do estigma / preconceito?!
Durante sua fala, em dado momento, vc se dirigiu a um cego como: “UM _CEGUINHO”.
Este termo, Mauro, não é aceito pelo nosso seguimento (os deficientes visuais), visto que, é acima de tudo pejorativo/ depreciativo…
Expressões como: _surdinho, _mudinho, _aleijadinho, _doidinho, _ceguinho, …, são estigmatizantes, depreciativas, clichês da discriminação / ignorancia…
Perdi a visão na adolecência, vivi oito anos interno em um educandário para cegos e ambliópes (pessoas com visão subnormal) , e acompanhei de perto a aversão (a qual comungo) ao termo em questão e similares.
Espero, que, vc que ainda é um jovem, receba minhas palavras como informação, testemunho, de alguém que vive esta coisa ( preconceito/discriminação) na pele, e reavalie conceitos.
Não o recrimino por isto , pois, não sei qual sua referencia no tema.
Acredito no poder da informação, e, que, os “formadores de opinião” conscientes de sua função podem desempenhar um papel inestimável junto a sociedade…

Respeitosamente

Valdenito de Souza

Caríssimo, desculpe a demora em responder.
Obrigado pela presença na palestra.
Na verdade, eu usei a palavra ceguinho porque estava falando da comparação entre conto e crônica. E, para ilustrar, usei uma crônica do Drummond que se chama “Caso do ceguinho”.
No texto, Drummond fala, de maneira carinhosa, que todo cego é ceguinho no coração da gente.
Então, na verdade, eu estava só reproduzindo o nome da crônica do Drummond.
Quanto ao tema do preconceito, eu tenho, nesses quase 20 anos de jornalista, feito muita reportagem sobre o assunto, acho fundamental o jornalista abrir espaço para denunciar injustiças e discriminações.
Já escrevi sobre discriminação a portadores de HIV, já dei voz a moradores de rua e de favelas, já falei sobre vários casos de superação (gente que superou algum tipo de deficiência e alcançou conquistas importantes) etc etc.
Por conta desse trabalho, acabei ganhando o título de Jornalista Amigo da Criança e sendo convidado a fazer parte do conselho da ONG Viva Rio.
Mas, como você mesmo alertou, é preciso estar sempre atento para não incorrer no preconceito.
Obrigado pela mensagem e abraços.

Mauro Ventura

CONTO CITADO:O CASO DE CEGUINHO
Carlos Drummond de Andrade

– Não viu o letreiro: “É expressamente proibida a entrada”?
– Desculpe, mas… O senhor não está percebendo?
A bengala branca palpava terreno. Era cego. Um rapaz tão bem apanhado! Duas ou três funcionárias aproximaram-se, enquanto o servidor que fizera a pergunta, encabulado, ia dando o fora.
Os óculos pretos do ceguinho, (todo cego é ceguinho, no coração da gente) ocultavam-lhe pudicamente o mal.
Cercado de moças, pareceu mais à vontade, e dirigiu-se a uma delas, por acaso a mais bonita:
– Sei que não é permitido, peço mil desculpas… A necessidade me obriga a isso. Não, não é auxílio. Eu vendo blusas, soutiens, essas coisinhas, compreende?
As moças entreolharam-se, o regulamento não admite comércio em repartição, ainda mais repartição da Fazenda. Mas, pode haver regulamento para ceguinhos? E aquele era tão bem apanhado. E há sempre necessidade, desejo ou curiosidade de uma blusa nova, um baby-doll.
Todas estavam precisadas de alguma coisa, todas estavam, por assim dizer, nuas.
Então a moça a que ele recorrera tomou a iniciativa de comprar. Os homens fingiram não perceber a infração.
O ceguinho abriu a valise de avião e foi tirando seus artigos. Gabava-lhes a renda finíssima, a qualidade da espuma de látex, o elástico substituível.
Pedia licença para estender a blusa no peito das moças, para que vissem o efeito. Compraram tudo de que precisavam ou não, ele agradeceu à madrinha – porque a essa altura já se considerava madrinha:
– A senhorita me deu sorte. Santa Luzia que a faça muito feliz! E, apertando-lhe o braço, com efusão:
– Posso pedir-lhe mais uma caridade? Podia. Era acompanhá-lo a outras salas. Ele temia ser mal recebido outra vez.
Como seu anjo-da-guarda não haveria perigo. E lá se foram, ela guiando, ele vendendo. Que confiança adquirida rapidamente na moça! Ia amparado a seu braço, talvez com um pouco de exagero.
Ela ia pensar isso – mas arrependeu-se antes de pensar. Um pobre ceguinho! Quando extirparás de teu coração, Adelaide, a erva má da suspeita? Pois com tanto cuidado, ainda assim ele tropeçou em alguém no corredor, e teve de agarrar-se a ela, com expressão ansiosa no rosto.
Sua respiração era apressada, tinha as mãos quentes. Que susto! Ficou assim algum tempo, como aninhado em sua benfeitora.
Não seria tempo demais? Ela ia de novo achar esquisito. Seria mesmo cego o rapaz? Aqueles óculos indevassáveis… Conteve-se, antes de sentir-se mais uma vez uma infame pecadora:
– Não é melhor o senhor ir embora? Deve estar cansado, Já vendeu bastante… Ele entendia que não, estava disposto a vender até o fim do expediente, com uma fada a protegê-lo, não é todos os dias que se encontra uma fada no caminho.
Ela o foi encaminhando para perto do elevador, dizendo-lhe que não era fada coisa nenhuma, era uma simples datilógrafa-mensalista, ele protestava, queria de novo sentir-se aconchegado, defendido, gabava-lhe o perfume. ..
O elevador abriu-se. Com suavidade e firmeza ela o impeliu para dentro, pediu ao cabineiro que tivesse cuidado com o ceguinho – se é que ele era mesmo ceguinho.

Carlos Drummond de Andrade