O cego e o politicamente correto

Colegas de lista,

É impressionante o tempo que se perde tentando encontrar formas politicamente corretas de expressar conceitos que poderiam ser definidos com facilidade pormeio de uma ou de duas palavras. Nos eventos relacionados com os cegos, por exemplo, invariavelm ente há no ar um sentimento de dúvida sobre a maneira correta pela qual alguém de visão normal deve dirigir-se ou referir-se a nós, sem falar que por vezes este assunto se torna alvo de discussão, havendo perda inútil e injustificável de um precioso t empo, que poderia ser muito melhor aproveitado se utilizado em discussões efetivamente produtivas, objetivando de fato resolver problemas.

No princípio, usava-se com naturalidade a palavra “cego” (como faz até hoje grande parte dos povos dos países desenvolvidos, pelo menos nos de língua inglesa e alemã), que não tem nenhum cunho ofensivo, pois cego, em sua forma substantiva, é definido nos dicionários como sendo “um indivíduo que não enxerga”, ou conceitos equivalentes. Mais tarde, alguém achou que, em vez de “cego”, deveria ser usada a expressão “deficiente visual”.
Mas então entrou-se numa importantíssima polêmica, segundo a qual era preciso distinguir entre cego (que não tem nenhum resíduo de visão) e deficiente visual (que tem visão parcial).
Havia-se chegado a uma definição perfeita, pois tanto cego quanto deficiente visual caracterizam de forma absolutamente satisfatória alguém que não enxerga. Mas houve os que acharam que em ambas as expressões havia discriminação, pois se privilegiava a deficiência em detrimento do ser humano, surgindo daí a expressão “pessoa portadora de deficiência”.
Este é, a meu ver, o limite, além do qual não se pode ir sem fazer papel ridículo. Mas o limite foi ultrapassado, porque alguém achou que não se poderia usar o termo “deficiente” em relação a alguém que tem uma incapacidade física, sensorial ou motora .
Adotou-se, então, a expressão “pessoa portadora de necessidades especiais”, que considero imbecil e que me recuso peremptoriamente a usar.

Até aqui, nada demais, pois tudo o que foi dito é de domínio público. Contudo, arrisco-me a dizer que a questão não pára por aqui, já que provavelmente o próximo passo será ampliar o termo anteriormente mencionado para “pessoa portadora de necessidade s especiais no campo visual” ou “pessoa portadora de necessidades especiais no campo auditivo”, ao que se seguirá um acirrado debate acerca da conveniência da palavra “campo”, que talvez pudesse ser substituída com mais propriedade por “área” ou por ” âmbito”.
Encerrada esta questão, qualquer que seja a palavra vencedora, virá a etapa seguinte, com a inevitável ampliação do conceito, sob pena de aquele então em vigor conter algum elemento ofensivo ou discriminatório. Poder-se-á, então, chegar a um conceito como “pessoa portadora de necessidades especiais relativas a dificuldades advindas de circunstâncias geradoras de comprometimento parcial ou total da região cerebral responsável pelo funcionamento do sentido da visão”.
Uma definição como esta poderá durar algum tempo, até que alguém resolva desengavetar o problema e propor outra, ainda mais completa. Diante disso, gostaria de dar minha contribuição, sugerindo como ideal, pelo menos por ora, para definir uma pessoa q ue não enxerga, a expressão “pessoa portadora de características anatômico-sensoriais cujas consequencias resultantes são necessidades especiais relativas a dificuldades intrinsecamente relacionadas a circunstâncias geradoras de fatores potencialmente capazes de acarretar comprometimento parcial ou total da região cerebral responsável pela manutenção das condições imprescindíveis na ocorrência dos processos físico-químicos envolvidos no conjunto de mecanismos de cunho orgânico que têm por finalida de regular o funcionamento do sentido da visÃo”.

O que quero dizer com tudo isso é que está mais do que na hora de parar de discutir o sexo dos anjos e que devemos voltar nossa atenção para problemas realmente relevantes, coisas que venham de fato a melhorar nossas vidas.
Não são expressões mais com plexas ou politicamente corretas que farão a diferença. Para evitar a palavra “cego”, chegou-se ao absurdo de inventar termos novos, que sequer existem em nossa língua, como “invidente” e “invisual”.
Por fim, há uma incoerência a destacar: se a palavra cego é tão ruim, por que ela continua presente nos nomes das entidades que nos representam? Por que a União Brasileira de Cegos, por exemplo, não passa a se chamar União Brasileira de Pessoas Portad oras de Necessidades Especiais no Campo da Visão?

Como disse acima, acho que “deficiente visual” é a melhor definição que já se conseguiu, e que só há discriminação nela para quem quiser que haja.
Não percamos mais tempo com essas questículas, quando há tanto a fazer! Assumamos, pois, que somos cegos ou deficientes visuais. Afinal, temos uma incapacidade sensorial e tentar negar isso é uma forma de discriminação contra nós proprios.

Fonte: GILBERTO HENRIQUE BUCHMANN E-mail: gihb@uol.com.br